"Não há pessoa humana embrionária"
Em voto "antológico" lido em 111 minutos, Carlos Ayres Britto abre caminho para defesa da legalização do aborto no país
Para ministro relator, se a inviolabilidade da vida estivesse prevista desde a concepção, o aborto legal seria inconstitucional
Fernando Bezerra/EFE
Público assiste à exposição do ministro Carlos Ayres Britto
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA
"Vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte", ou "Não há uma pessoa humana embrionária. Mas embrião de pessoa humana." Com frases como essas, o ministro Carlos Ayres Britto selou seu voto favorável à Lei de Biossegurança, que autoriza a pesquisa científica em células-tronco embrionárias.
Nos 111 minutos que levou para ler seu voto de 50 páginas, o ministro respondeu diretamente à afirmação-síntese da ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles, que pretende proibir as pesquisas com embriões. Para Fonteles e para CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), "a vida começa desde a fecundação", de onde decorre que deve ser protegida em sua inviolabilidade, como prevê o artigo 5º da Constituição Federal.
Ayres Britto rebateu a tese de Fonteles. "No que se refere ao início da vida humana, a Constituição é um silêncio de morte", disse, pedindo perdão pelo trocadilho. "A Constituição faz expresso uso do adjetivo "residentes" no País (não em útero materno e menos ainda em tubo de ensaio ou em "placa de Petri" [pires de laboratório])."
O ministro disse que, se a inviolabilidade da vida estivesse prevista no ordenamento jurídico brasileiro desde a concepção, o aborto legal, permitido pelo Código Penal desde a década de 1940 em casos de estupro ou risco de vida para a mãe, seria inconstitucional. E não é.
Nova possibilidade
Esta argumentação animou as feministas presentes no plenário do STF. Se a Constituição não garante a inviolabilidade da vida "desde a concepção", pode-se discutir a legalização do aborto e mesmo aprová-la na legislação ordinária. "Para nós, o voto do ministro abriu novas possibilidades", disse uma delas à Folha.
A ministra Ellen Gracie, na abertura da sessão, sob o brasão da República e um crucifixo dourado, advertiu a platéia que não permitiria manifestações. Mas foi difícil conter o riso quando Ayres Britto expôs outro argumento. Segundo ele, a fertilização do óvulo, quando acontece do lado de dentro da mulher é diferente da que acontece do lado de dentro de um vidro. Referia-se à fecundação in vitro, obtida em laboratório, "sem conjunção carnal".
"Se toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana. Situação em que também deixam de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for introduzido no colo do útero feminino. Criou-se a fecundação sem cópula e sem gravidez."
Segundo ele, o uso das células-tronco em pesquisa não pode ser confundido com aborto, porque "nenhum espécime feminino engravida à distância, por controle remoto".
"Um zigoto produzido extracorporalmente não caminha na direção de sua humanização. Há falta do corpo feminino, do húmus. Ele empaca, estaca. No corpo materno, o zigoto pode tornar-se humano. Na gélida solidão do confinamento in vitro, é a degradação", disse, referindo-se ao fato de que o congelamento afeta a capacidade de embriões fertilizados artificialmente gerarem bebês.
Ayres Britto lembrou que a ação direita de inconstitucionalidade não impugna o descarte de embriões, que é prática corrente em várias clínicas de reprodução humana. "Só se pretende impugnar o uso para pesquisa", estranhou.
Ninhada obrigatória
Mas o que fazer com os embriões produzidos artificialmente e que não foram utilizados? Segundo ele, além do descarte e do uso em pesquisas com células-tronco, só há duas alternativas: deixar o embrião congelado para sempre ou obrigar mulheres a implantá-los para engravidarem.
"Tal aproveitamento, à revelia do casal, seria extremamente perigoso para a vida da mulher que passasse pela desdita de uma compulsiva nidação de grande número de embriões (a gestante a ter que aceitar verdadeira ninhada de filhos de uma só vez)."
Ao término da leitura do voto do ministro Ayres Britto, cadeirantes e cientistas comemoravam o voto, enquanto Ives Gandra, que representou a CNBB, levantava-se impaciente para sair -ainda viria a manifestação pró-Lei de Celso de Mello e de Ellen Gracie. "Se não ganharmos, com certeza temos o voto mais bonito e bem formulado da história do STF", disse a estudante de Direito Carmen Stocchi, que tem uma irmã com paralisia cerebral depositando esperança nas pesquisas.
Publicado na Folha de São Paulo de Hoje e disponível em http://www.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0603200803.htm
quinta-feira, 6 de março de 2008
Vale a pena ler, porque é muito bom!
Postado por Luiz às 01:29
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