domingo, 26 de agosto de 2007

Sociologia no Feminino 1


Em torno dos lamentos e celebrações relativas aos 10 anos de morte da Princesa Diana, a FSP de hoje trouxe um artigo do consagrado sociólogo inglês Anthony Giddens, autor do interessantíssimo A transformação da intimidade. É bem bacana ver que os esforços das mulheres para politizar e teorizar a dimensão do privado surtiram efeitos concretos e inimagináveis. Ver esses debates no centro da sociologia mundial hoje é algo que seguramente mostra como o feministo fez e continua fazendo história.


Bridget Jones real
Incapaz de conciliar o fascínio pela condição de celebridade e o desejo de voltar ao anonimato, Diana expressou na anorexia seu dilaceramento íntimo, diz Giddens

ANTHONY GIDDENS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os anos 1980 assinalaram uma transição grande para a monarquia britânica, não apenas em razão de Diana propriamente dita mas também em razão de mudanças estruturais mais amplas. A cultura da deferência estava ficando para trás, enquanto despontava a era das celebridades. No passado, a imprensa não se intrometera na privacidade da família real, mesmo quando alguns de seus membros (a princesa Margaret, por exemplo) se metiam em problemas de vários tipos. A rainha conserva até hoje a tradição de jamais conceder entrevistas. Diana foi escolhida para casar-se com Charles porque parecia pertencer a esse passado em processo de desaparecimento. Ela era uma tímida professora de pré-escola, sem passado sexual discernível. Tenho certeza de que, no início, ela acreditou inteiramente na idéia de que viveu o sonho de Cinderela de ser arrebatada por um belo príncipe. Ela se desiludiu rapidamente e passou a viver sua vida por meio do interesse público suscitado por seus problemas. Ao mesmo tempo, era um espelho da luta das mulheres para libertar-se do passado, mas não conseguiu encontrar uma maneira de fugir dele. Sua anorexia era a expressão física de seus problemas, mas ela quase a ostentava como emblema de sua resistência ao ambiente do palácio. Diana era a "celebridade" arquetípica, no sentido em que abraçou sua condição de celebridade, mas, ao mesmo tempo, ansiava por voltar ao anonimato. Ela era "abordável" de um modo que nenhum outro membro da família real foi até hoje. Não creio que ela tenha sido uma pessoa excepcional sob qualquer aspecto, mas era alguém que aparecia numa telenovela-realidade -precursora da TV-realidade que chegaria mais tarde. Era Bridget Jones [personagem de romance de Helen Fielding que registra em livro toda a sua vida e a busca pelo homem ideal], mas traduzida para uma esfera mais elevada. O frenesi que cercou o casamento original foi inteiramente diferente do fervor que Diana passou a suscitar mais tarde. Foi "institucional" -um espetáculo público do tipo antigo, que se enquadrava nas rotinas tradicionais. Basta colocar em contraste o casamento e o funeral, em que Elton John cantou, num encontro extraordinário entre a realeza e a cultura popular. Além disso, Elton reescreveu para o funeral uma homenagem melódica, mas sentimentalóide, a Marilyn Monroe; espantosamente, isso foi tolerado pelo palácio, principalmente porque a família real errara no tom de sua própria reação à morte de Diana. Comprovando que algumas coisas continuam iguais, apesar de mudar, a família real, sobretudo a rainha, conseguiu reafirmar sua autoridade, tanto que, hoje, 80% da população expressa apoio a ela. Os problemas de Diana não estavam relacionados apenas à realeza enquanto tal ou a sua própria fama mundial ambígua. Também se deviam a algumas questões bastante simples e diretas. Quando, em sua entrevista célebre, ela disse que havia "três de nós" em seu casamento, descreveu um problema bastante comum, embora tortuoso: que seu marido, desde o início, não conseguira esquecer seu relacionamento passado, que tinha sido muito forte -tão forte que foi retomado após a morte de Diana. "Princesa do povo"Enquanto o casamento de Diana e Charles existiu oficialmente, houve poucas decorrências diretas para a política. Diana apenas passou a defender causas humanitárias de maneira pública quando seu casamento já tinha claramente ingressado em fase terminal. [O então premiê] Tony Blair foi magistral no tratamento público que deu à morte de Diana, declarando que ela tinha sido a "princesa do povo". Foi um momento-chave também na vida dele e uma plataforma para sua popularidade inicial, baseada em grande medida numa conexão pessoal com o eleitorado. Mas os diários de Alastair Campbell [ex-diretor de Comunicações de Blair, renunciou em 2003] mostram que eles passaram uma noite em claro decidindo como reagir (à morte de Diana). O próprio Campbell parece ter ficado fortemente impressionado quando conheceu Diana. Como parece ter sido ele quem cunhou a frase "princesa do povo", esse foi mais um momento emblemático no surgimento do culto às celebridades, porque ele queria arrancar um pouco de capital político do acontecimento, além de captar o estado de ânimo da nação. Fui olhar a multidão de cartas escritas a Diana por pessoas comuns, em sua memória, e que estavam empilhadas diante do palácio de Kensington. Elas mostram que muitas mulheres de fato sentiam uma empatia especial por Diana -muitas escreveram como se ela ainda estivesse viva. Não vi muitas cartas de homens. Mas a emoção coletiva aconteceu e desapareceu rapidamente, quase como se a coisa toda tivesse sido mais uma história que a realidade. Hoje, Diana parece uma figura distante. Blair não conquistou nenhuma vantagem de longo prazo a partir da maneira como enfrentou a morte de Lady Di. Pelo contrário, ele dependia um pouco demais de uma forma personalizada de legitimidade. Mais tarde, sofreu mais do que talvez teria feito se tivesse construído uma presença pessoal mais digna, baseada em algo mais sólido; a desilusão das pessoas em relação a ele foi um pouco como o que acontece quando um caso de amor azeda. Hoje a família real exerce pouca influência sobre a política, mesmo num sentido difuso. A deferência desapareceu para sempre. O futuro da família real está em discussão: o que acontecerá quando a rainha morrer ou abdicar do trono? Charles não é nem um pouco popular, e tampouco Camilla o é, apesar de a população estar mais conformada com ela do que estava antes. A monarquia vai perdurar, mas talvez fique mais e mais marginalizada -mais uma atração turística que símbolo da nação e de sua continuidade.

ANTHONY GIDDENS é sociólogo e ex-diretor da London School of Economics. Foi o principal teórico da Terceira Via, programa encampado por políticos como Tony Blair e o ex-presidente dos EUA Bill Clinton. É autor de, entre outros, "O Debate Global sobre a Terceira Via" (ed. Unesp). Depoimento dado a Andrea Murta . Tradução de Clara Allain .

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