A matéria é da FSP de hoje e reproduzo abaixo. Alan Touraine, um dos maiores sociólogos da atualidade, está lançando no Brasil "O mundo das mulheres". Definitivamente, foi-se o tempo que feminismo e teoria feminista eram temas marginais na academia. Só espero que agora os homens, em nosso arraigado androcentrismo, não queiram ser mais feministas que as próprias mulhres. Em tempo, faz 10 anos que Diana morreu, e a data tem produzido várias análises sobre seu legado e lugar na história do presente.
São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007
Alain Touraine, que está lançando no Brasil "O Mundo das Mulheres", diz que Diana catalisou o público ao reunir sentimentos simples, vida de corte e dinheiro; para francês, Ocidente vive hoje sob um paradigma feminino
Alain Touraine, que está lançando no Brasil "O Mundo das Mulheres", diz que Diana catalisou o público ao reunir sentimentos simples, vida de corte e dinheiro; para francês, Ocidente vive hoje sob um paradigma feminino
Longe de ser um paradigma para a mulher "pós-feminista" do mundo contemporâneo, a princesa Diana, morta há dez anos, foi sobretudo personagem de um enredo que remonta ao tempo das tragédias gregas e dos contos de fada, numa remixagem midiática para as massas. A tese é do francês Alain Touraine, na entrevista a seguir, dada à Folha por telefone. Touraine, um dos principais sociólogos da atualidade, se consagrou como agudo analista da sociedade pós-industrial. Após se devotar a estudos sobre o trabalho e a classe operária -boa parte dos quais na América Latina- e sobre movimentos sociais, ele se voltou para a revalorização da categoria do sujeito. Sua meta é desvendar os protagonistas e as formas de ação que hoje impulsionam as grandes transformações -que, para ele, são mais culturais que sociopolíticas. E é nesse contexto que Touraine decidiu atentar para a questão da mulher. Realizou na França, entre 2004 e 2005, 60 entrevistas, três reuniões de grupos de discussão e um estudo complementar sobre as mulheres muçulmanas. O resultado é o livro "O Mundo das Mulheres" (trad. Francisco Morás, 208 págs., R$ 35), que está saindo no Brasil pela editora Vozes. Nele, o professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) mostra como as mulheres são hoje construtoras de uma nova cultura, válida não só para elas mesmas mas para o conjunto da sociedade. Uma cultura marcada pela priorização não mais da "conquista do mundo" -típica da época da dominação masculina-, mas sim de uma "construção de si" sustentada na sexualidade e na combinação do que, antes, eram pólos opostos -por exemplo, afetividade e razão, corpo e espírito, masculino e feminino. Alquimias múltiplas que superariam as assimetrias e "formas de dominação que deram sua dinâmica (e sua brutalidade) à modernização européia". Para Touraine hoje a mulher afirma sua autonomia e liberdade sem recorrer ao discurso da vitimização nem à queima de sutiãs em praça pública. E, assim, ela também reflete e reforça o primado da felicidade individual e o descrédito que pesa sobre a política e sobre as formas tradicionais de ação e de utopia coletivas.
FOLHA - Qual o significado da princesa Diana, dez anos após sua morte? Ela seria um símbolo dessa mulher "pós-feminista" de que o sr. trata no livro? ALAIN TOURAINE - Essa não é minha opinião, pois considero que toda a evolução cultural de que falo é uma outra coisa. A personagem de Lady Di teve uma popularidade extraordinária por razões diferentes. Trata-se de um fenômeno clássico: a família real -e tudo o que diz respeito à família real, seja na Inglaterra, em Mônaco etc.- tem um aspecto de conto de fadas. Por outro lado, há um tipo de brutalidade nas relações dentro desse mundo dourado da família real, relações de uma brutalidade extrema: o príncipe que casa com uma mulher muito jovem e já tem uma amante... Vendo sociologicamente, penso na emoção extrema da população, carregando problemas da vida pessoal, conflitos pessoais, sonhos, violência ou amor que se encontram ao mesmo tempo na corte. Essa mistura da dureza da História e da sensibilidade de uma história de vida pessoal existe, por exemplo, em Maria Antonieta, rainha da França guilhotinada, ou nas amantes de Luís 14. Não acredito de modo nenhum que isso seja de hoje, já que o tema da princesa infeliz já está presente na tragédia grega, está presente em todo lugar e é algo que considero mais fundamental, mais permanente. Não acredito de modo algum que se possa considerar a personagem de Lady Di como especificamente pós-feminista.
FOLHA - Em seu livro, o sr. cita a mudança cultural protagonizada pela mulher atual como sendo a capacidade de combinação de opostos. Um fato como o namoro de Diana com um homem de origem árabe [Dodi al Fayed] não significa uma síntese -ao invés de um choque- de culturas? TOURAINE - Quando você me diz que o último namorado de Diana foi árabe, digo: primeiramente era milionário, em segundo lugar, inglês e, em terceiro, árabe. Enfim, não se trata aqui de ele ser árabe, pois era filho do proprietário da Harrods [célebre loja de departamentos londrina, do milionário egípcio Mohamed al Fayed]. Dificilmente se pareceria com um homem do Terceiro Mundo.
FOLHA - O que explica então o fascínio despertado pela princesa? TOURAINE - É essa mistura que é fascinante para as pessoas: de um lado, o sentimento pessoal e a corte e, de outro, os milhões e os bilhões em dinheiro. Penso que o mundo do poder e o mundo do dinheiro são completamente controlados, frios. Quando vemos tudo isso ser perturbado, alterado, por uma sensibilidade pessoal, por uma história extremamente complicada entre o príncipe, sua mulher e seu amante, ficamos fascinados. Que as coisas que acontecem na rua ao lado se passem também na casa dos bilionários e na corte também fascina. Mas o que me toca, o que toca milhões de pessoas, é esse sentimento da proximidade dessa mulher, da morte, do acidente como uma tragédia grega. O amor, o dinheiro, os tronos, a traição, a morte são todos temas da vida humana e se encontram nessa personagem. Penso que as inúmeras pessoas, de vários lugares, que enviaram flores [após a morte de Diana] são pessoas sensíveis -o que me parece tão sincero quanto respeitável- ao que é o encontro de uma tragédia, uma história de um amor pessoal, no meio de um mundo frio, poderoso e imóvel, que são o trono e o dinheiro.
FOLHA - Camille Paglia declarou que, com a entrada de Lady Di na família real, a monarquia britânica se "modernizou". O sr. concorda? TOURAINE - Escute, não concordo, porque não vejo onde está a modernidade nisso. A rainha defende as tradições, o que é o papel dela. Mas não se pode dizer que ela seja modernizadora. Quanto ao príncipe herdeiro [Charles], o mínimo que posso dizer é que se pode ter dúvidas sobre o fato de sua chegada ao trono salvar a monarquia britânica. O Reino Unido é um país de grande tradição. Há uma espécie de força intrínseca à monarquia, embora a rainha tenha um poder muito pequeno, enquanto o rei da Suécia e a rainha da Holanda não têm poder nenhum. A Inglaterra é um país em que, mais do que em qualquer outro, convivem aspectos extremamente modernos e extremamente tradicionais. Mas eu diria que, com efeito, Lady Di representa problemas que são não modernos, mas eternos e alheios à instituição. Nesse sentido, o mau humor da rainha em relação a Lady Di indica bem que a monarquia se sentiu ameaçada. E hoje penso que muita gente, ao olhar para esse homem que pode se tornar rei [príncipe Charles], sempre se lembrará do drama de sua vida, do drama de Lady Di. Isso é um elemento negativo para a monarquia britânica.
FOLHA - O sr. detectou alguma influência da imagem de Lady Di sobre as mulheres ouvidas na pesquisa que resultou no livro? TOURAINE - Não. As mulheres comuns, normais, médias, estão concentradas na construção cultural da personalidade delas, enquanto o fenômeno Lady Di é do gênero da fábula, da relação com o imaginário.Não quero exagerar, mas diria que a referência a Lady Di seria provavelmente considerada negativa pela maioria das mulheres que eu ouvi.Não sua personalidade, mas o excesso de publicidade [em torno dela], a mídia etc.
FOLHA - Falando agora de seu livro, por que escolheu a mulher como objeto de pesquisa? TOURAINE - Meu livro não trata da identidade feminina. Ele apresenta proposições sobre as transformações da sociedade, em particular a idéia de que as categorias culturais comandavam, a partir de um dado momento, as categorias sociais. Observei inicialmente que as mulheres correspondiam a essas mudanças ou eram suas portadoras. E descobri que não havia nenhuma resposta. Iniciei um trabalho pessoal de entrevista com grupos e indivíduos e me deparei com temas que correspondiam exatamente àquilo que eu pensava. Isto é, que essas mulheres se definiam em termos de cultura, de personalidade, e consideravam que ser mulher era a meta da vida, que elas queriam se construir como mulheres e principalmente numa determinada área, a sexualidade. Portanto, não fiz uma ruptura com o que fazia antes; eu diria que transformei a tese geral de meu livro sobre o novo paradigma ["Um Novo Paradigma -Para Compreender o Mundo de Hoje", ed. Vozes] em definição e descoberta de novos atores. A passagem para um novo paradigma é realizada sobretudo pelas mulheres.
FOLHA - A partir de seu livro, é possível responder à pergunta de Freud "o que querem as mulheres?"? TOURAINE - A referência a Freud é particularmente imprópria aqui na medida em que o tema foi pouco estudado por ele e, por vezes, de maneira quase ridícula, como sobre a inveja do pênis etc. Meu ponto de vista não é o da psicologia. Escutei as mulheres, as fiz falar entre elas, e segundo uma visão da sociedade. Quais são ou devem ser suas condutas, seus princípios de orientação positiva. Eu descobri essas mulheres como criadoras ou aquelas que afirmavam uma nova moral. Para falar rapidamente, a imagem masculina era a imagem da conquista do mundo, e a imagem feminina é não a da conquista, mas sim a da construção de si. Um retorno ao interior, acrescentando-se que o que é feito ou iniciado pelas mulheres é adotado pelos homens com grande facilidade ou com grande lentidão. Quando nós entrevistamos os homens, em geral eles dizem que estão de acordo com essas transformações, que, com efeito, eram transformações culturais feitas para todo mundo, homens e mulheres.
FOLHA - Essa diferença que o sr. assinalou, entre a conquista do mundo e a construção de si, se deve a uma distinção de "natureza" entre o masculino e o feminino? TOURAINE - Minha interpretação foi antes de tudo histórica. Ou seja: houve um modelo de desenvolvimento histórico, que podemos chamar de ocidental ou europeu, que se baseou em fundamentos como a conquista do mundo. Ou seja, a concentração de poder e recursos nas mãos de pequenas elites e a submissão de categorias como os trabalhadores e colonizados, mulheres e crianças. Ao longo do século 20 ou dos dois últimos séculos, as revoluções suprimiram os reis, os movimentos quiseram obter capacidades e direitos, as colônias foram descolonizadas etc. E então o mundo ocidental se encontrou sem projetos construtivos e num tipo de abandono, digamos, ao mercado e a um tipo de consumo elementar. E o que observo é que se constituem e se constituíram no mundo ocidental, num amplo sentido, novos objetivos, que são não de modo nenhum de conquista, mas sim, ao contrário, fundamentalmente de restabelecer uma certa unidade entre pólos que haviam sido contrapostos. Evidentemente o caso mais importante é o da ecologia política. As mulheres de início participaram ativamente desse movimento, mas realizam algo análogo, que é: não se deve opor o corpo e o espírito, o corpo revestindo o espírito. É preciso, ao contrário, reconciliar, combinar os opostos, e isso se tornou um grande tema da cultura contemporânea. Há muitos estudos mostrando que, quando interrogadas sobre a escolha entre a vida profissional e a vida privada, elas respondem: "Não é uma questão de escolha, nós podemos combinar as duas coisas" -e é isso o que é característico da cultura contemporânea.
FOLHA - Então o "mundo das mulheres" é hoje o mundo de todos? TOURAINE - Certamente. É algo clássico, os grandes movimentos culturais ou sociais foram sempre promovidos por grupos particulares, mas com uma intenção universalista. As mulheres não dizem jamais que querem substituir um mundo masculino por um feminino. Elas querem é ir além das oposições, suprimir a dominação do homem sobre a mulher e promover um mundo de reintegração dos elementos que haviam sido contrapostos.
FOLHA - E quais as perspectivas para os homens no "mundo das mulheres"? Um tipo de feminização? TOURAINE - Essa questão é muito difícil. Não diria feminização, mas de certa forma os homens estão envolvidos no movimento que foi mais definido pelas mulheres, isto é, um cuidado de si, seja pela ginástica, o cuidado com o corpo ou o retorno a religiões orientais.
FOLHA - Como definir o papel da sexualidade na construção de si ambicionada pelas mulheres? O que elas compreendem ser a realização e a felicidade na esfera sexual? TOURAINE - Eu diria que o que as mulheres e, atrás delas, os homens fazem de uma maneira maciça hoje em dia é a idéia de transformar isso que se chama sexo, pulsão, libido em relação consigo mesmo em modelo de conduta, ao qual se incorporam esses elementos libidinais, como diriam os psicanalistas, ou eróticos etc. No fundo, uma relação com o corpo em todas as suas dimensões: há uma reabilitação do corpo como um modo de se afirmar para si mesma.
FOLHA - Por que o sr. diz que "as lésbicas e os gays não podem ser considerados terceiro e quarto sexos", respectivamente? TOURAINE - Creio que o papel das lésbicas na evolução das idéias foi essencial, enquanto os gays tiveram um papel de contestação, de intervenção, ainda maior. Mas me interesso muito pelas reflexões de feministas americanas que dizem que o que acontece e deve acontecer é um tipo de supressão ou, em todo caso, de indiferenciação relativa dos papéis sexuais. Em relação aos homossexuais, homens e mulheres, transexuais, pessoas que são bissexuais, multissexuais, penso que essas feministas têm razão em dizer que as mulheres intervêm para superar essa dualidade. Elas têm razão em dizer que essa dualidade está intimamente ligada à situação tradicional de dominação masculina sobre as mulheres e que, a partir do momento em que se quer suprimir essa dominação, as categorias homem-mulher se tornam frágeis -não somente como gênero mas também como sexo. É por isso que sou um pouco hesitante sobre a importância a longo prazo do movimento homossexual, pois creio que é mais a indiferenciação e a mistura de categorias do que a criação de nova categorias. Evidentemente, é preciso respeitar os direitos de todos os que aparecem como minorias ou, simplesmente, de uma sexualidade diferente.
FOLHA - Por que o sr. diz que "as lésbicas e os gays não podem ser considerados terceiro e quarto sexos", respectivamente? TOURAINE - Creio que o papel das lésbicas na evolução das idéias foi essencial, enquanto os gays tiveram um papel de contestação, de intervenção, ainda maior. Mas me interesso muito pelas reflexões de feministas americanas que dizem que o que acontece e deve acontecer é um tipo de supressão ou, em todo caso, de indiferenciação relativa dos papéis sexuais. Em relação aos homossexuais, homens e mulheres, transexuais, pessoas que são bissexuais, multissexuais, penso que essas feministas têm razão em dizer que as mulheres intervêm para superar essa dualidade. Elas têm razão em dizer que essa dualidade está intimamente ligada à situação tradicional de dominação masculina sobre as mulheres e que, a partir do momento em que se quer suprimir essa dominação, as categorias homem-mulher se tornam frágeis -não somente como gênero mas também como sexo. É por isso que sou um pouco hesitante sobre a importância a longo prazo do movimento homossexual, pois creio que é mais a indiferenciação e a mistura de categorias do que a criação de nova categorias. Evidentemente, é preciso respeitar os direitos de todos os que aparecem como minorias ou, simplesmente, de uma sexualidade diferente.
FOLHA - Sua pesquisa constatou um interesse muito pequeno das mulheres por política... TOURAINE - Não é um interesse muito pequeno, é uma rejeição. Essas mulheres não gostam de serem chamadas de feministas, pois, para elas, "feminista" é uma definição política, e elas se situam em um plano cultural. E é verdade que é uma grande diferença, as feministas desempenharam um papel essencialmente por mudar a lei, enquanto as mulheres de hoje não se preocupam tanto com a mudança da lei, mas com a mudança cultural.
FOLHA - Como o sr. analisa a possibilidade de a democrata Hillary Clinton se tornar presidente dos EUA? TOURAINE - Não diria que Hillary Clinton seja uma personagem definida essencialmente por valores femininos. Já observei -e talvez seja um fenômeno francês- que o meio que permanece mais machista ou antifeminino é o meio político. Desse ponto de vista, o meio político está atrasado e segue o movimento geral, mas considero que ser ou não mulher não tem peso decisivo no valor do candidato.
FOLHA - O feminismo está ultrapassado? TOURAINE - O que realmente se chamou de movimento das mulheres, de liberação das mulheres, de feminismo foi essencialmente um movimento político. Esse movimento nasceu em vários países, mas onde teve mais peso foi no Reino Unido.E em vários países a aquisição do direito ao voto pela mulher foi o objetivo prioritário.Em seguida houve todas as questões capitais sobre a liberdade de dispor do corpo e, portanto, sobre contracepção e aborto.Foi quando o movimento feminista passou de tema político a tema propriamente cultural. Houve, assim, um deslocamento extremamente nítido da ordem política, jurídica, rumo a uma ordem cultural e da conduta de si.
FOLHA - Sua pesquisa foi realizada na França. Os resultados seriam similares num país como o Brasil? TOURAINE - Numerosos estudos feitos sobre as mulheres na América Latina, sobretudo no Brasil e, em certa medida, no Chile apontam tratar-se de um problema muito diferente, mas que ao mesmo tempo remete ao mesmo problema. O grande fenômeno que se observa nos meios populares é primeiramente o papel dominante das mulheres, pois as famílias são freqüentemente monoparentais. As mulheres têm os filhos, os homens desaparecem, e então observamos freqüentemente que são as mulheres que tomam as iniciativas quanto a escola, hospital etc. Contrariamente ao que se diz em relação ao sul da América Latina -pois a realidade mexicana é bem diferente-, a idéia da mulher dominada é uma idéia em grande medida falsa.
FOLHA - Um importante capítulo de seu livro é dedicado às muçulmanas que vivem na França. Como elas se inserem nesse novo mundo das mulheres? TOURAINE - A tese que se disseminou pelo mundo é a do choque de civilizações de [Samuel] Huntington. Eu me perguntei, então: essas mulheres que estão entre o meio familiar e comunitário muçulmano e o meio francês vivem o conflito entre essas duas culturas? Ora, não é de modo nenhum o que observei. Elas se preocupam essencialmente com a forma de combinar as duas culturas, adotando certos aspectos e rejeitando outros. Quase todas essas mulheres aderem ao islã, mas recusam o controle exercido pela família ou pela comunidade sobre elas. Portanto, são cidadãs francesas, falam francês, vão à escola e se definem absolutamente como francesas. Mas, ao mesmo tempo, têm consciência de que há uma forte discriminação contra os muçulmanos e muçulmanas na França e são extremamente hostis às tendências racistas na sociedade francesa. O resultado que obtive é que essas mulheres afirmam ser preciso reforçar a individualidade. Cito a frase de uma mulher que está deixando a casa dos pais: "Percebo que, pela primeira vez na minha vida, acabo de dizer "eu'". Aquilo em que acredito é que esse encontro de culturas, que pode resultar num choque, pode também resultar no desenvolvimento do indivíduo e da capacidade de combinar uma pluralidade de experiências culturais.
FOLHA - É possível mencionar alguém, nos campos da arte, cultura ou política, que fosse o protótipo da nova mulher ? TOURAINE - Não gosto dessa imagem. Mas diria que foi no mundo escandinavo que se formou o maior número de mulheres que alcançaram grande responsabilidade no desenvolvimento de idéias que possam resultar na transformação profunda da sociedade. Historicamente, houve no mundo escandinavo uma criatividade em tudo o que diz respeito à reflexão sobre a mulher e que é, indiscutivelmente, maior que em outros países.
FOLHA - Para resumir, o rosto do mundo global é um rosto feminino? TOURAINE - Não diria que é um rosto feminino, diria que é um rosto esculpido pelas mulheres, e que, numa certa medida, está além das oposições de sexo. O que não quero fazer é uma psicologia das mulheres contra uma psicologia dos homens.Penso que as mulheres, por terem sido dominadas, foram elementos de ação, de vingança, de restabelecimento e reivindicação de direitos. São justamente as mulheres que criam esse mundo cultural novo.Mas não é um mundo das mulheres, mas um mundo criado a partir da vontade das mulheres de se libertar e feito, como disse, tanto pelos homens quanto pelas mulheres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário